segunda-feira, 14 de novembro de 2011

''Se não nós, quem?"


O ativismo político radical na Alemanha dos anos 60 é o foco da película extraordinária Se não nós, quem?. O tema  político um tanto repetitivo, bem que poderia ser enfadonho. Mas o primeiro longa de ficção do documentarista Andres Veiel, a quem o assunto já interessara no documentário Black box BRD, já é motivo para entramos nas poucas salas que o filme se apresenta de coração e alma abertos – chato isso de termos tão pouco acesso aos filmes de arte. Como diz uma prima minha, deveriam enfiar garganta abaixo como remédio para crianças.
O filme alemão é um retrato da militante do grupo Baader Meinhof, a ativista de nome estranho mas personalidade forte, Gudrun Ensslin, e seu amante obcecado, talvez não pelos mesmíssimos ideiais, Bernward Vesper. Andei lendo que há aproximadamente três anos, em O complexo Baader Meinhof, o cineasta Uli Edel já havia explorado território semelhante, o que poderia complicar a missão de Veiel na sua obra, o que presumo não ter acontecido. O filme é vigoroso em cenas singulares e takes geniais, sabendo explorar o talento de tão bons e desconhecidos atores.
Veiel examina cuidadosamente as relações estabelecidas através das palavras, crenças e ideiais num contexto cultural bastante influenciado pela literatura e movimentos políticos. O roteiro, de tão rigoroso, torna-se cansativo no quarto final da película. Eu saí do Reserva Cultural com uma vontade inimaginável de poder ter dito para o Veiel que quinze minutos cortados faria muito bem àquela obra.


O diretor pontuou a narrativa com trechos de documentários, o que o distancia daquilo que poderia ser um tema cansativo para quem já saturou de ver histórias de ativistas e guerras, nessa união indissolúvel. Além disso, brilhante e emocionnte é a combinação feita à trilha sonora que passou por Bilie Holiday a Rod Stward e famosos hits de época que marcaram muito bem a cronologia do filme.
Participação pequena da atriz Imogen Kogge, que eu nunca tinha visto, não diminuiu seu trabalho virtuoso. Encena de forma emocionante e grandiosa em closes fantásticos. Com a escusas pelas grandes atuações, sem medo de ser clichê, rouba todas as cenas em que atua.
O filme é para quem tem cabeça e veia. Também para quem tem sangue alemão patriota correndo por esta. Um pitada de carinho pelos psicólogos também é certo, a saber por aquela prima que quer enfiar filmes goela abaixo.
Ah, de tão genial, já ia esquecendo de tratar da direção de arte que sinceramente não sei quem assina, mas, talvez pelo brilhantismo, mereça um capítulo só seu. Para quem conhece a Alemanha - e gosta dela - , vivenciar cenários tão bem montados, é simplesmente apaixonante.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

UM SERTÃO VIRANDO MAR *


 
Cruzava a baía de São Marcos por ferry boat, entre Ponta da Espera e Cujupe, pela primeira vez, sem ter a ideia do que realmente me esperava, mas começava ali a minha maior jornada profissional. Iniciava o ciclo de inspeção comandado pelo Corregedor-Geral da Justiça, Antonio Guerreiro Júnior.

Na verdade, o programa, de forma inusitada, tomou proporções maiores do que eu imaginava por um episódio particular. Aquela viagem tinham dois propósitos: iniciar os trabalhos de mutirão da comarca de Pinheiro que era acometida de um aglomerado processual, e a visita do Corregedor às comarcas da Baixada para conhecer in loco a situação física dos prédios dos fóruns e a eficiência na prestação de serviços ao jurisdicionado.
O dia do retorno coincidiu com o término dos trabalhos em Pinheiro, e, não podendo ficar para o encerramento, o Corregedor pediu que eu levasse aos juízes e servidores da comarca suas palavras de agradecimento. Tomado da emoção pelo que presenciei naquela região, confesso que fui audacioso. Fiz um apêndice: ‘O Corregedor, estando muito satisfeito com o que aqui foi realizado, determinou-se a visitar as 110 comarcas do estado para conhecer a realidade do Poder Judiciário e, em parceria com o Tribunal de Justiça, revitalizar a tão carente Justiça de Primeiro Grau’. 

Ai! Retornava sob as águas daquela baía, inspiração de grandes poetas, com um frio raro na barriga, longe de qualquer poesia inspiradora. ‘De onde eu tirei isso, meu Deus?!’. Alguém falara por mim, tinha como certo, querendo me enganar.

“Corregedor, fiz o que determinou, mas tenho que informar que, por minha irresponsabilidade, acrescentei palavras que não eram suas”. “E quais foram essas palavras, meu pai?” – perguntou-me da forma sempre carismática o meu chefe. Fui direto - “falei que irá visitar todas as comarcas do Estado, o que sei ser improvável”. 

Mesmo sabendo que poderia corrigir a minha ousadia, me sentiria muito mal qualquer que fosse o esboço negativo do meu superior, embora estivesse ali o meu verdadeiro anseio de trabalho. “E vamos!”. 

“Como?”. Ufa! O que acabei por esboçar espontaneamente onde não deveria, o chefe mostrou tencionar como meta de gestão, sem a minha exposta consciência, na proporção de minha humilde visão jurídico-administrativa. Sentimentos de alívio e satisfação me deram uma vontade infinda de trabalhar. 

Essa ansiedade não era à toa. Já nas primeiras visitas, realizamos tarefas que eram estrelas aos olhos dos magistrados e servidores. Era gratificante sentir que simples ações tinham excelentes respostas, como a deliberação da retirada de conjuntos enormes de bens inservíveis que encontrávamos no trajeto.

Outras etapas vieram em um planejamento que envolveu todos os setores da Corregedoria, já com a presença da Diretora, Sumaya Heluy. Assessores se uniram e a comitiva contou com técnicos para solucionar problemas eventuais. Projetos como o “Fale Audiência” e “Tele Audiência”, elaborado pela CGJ foram implantados. Também, durante as inspeções, reconheceu-se a urgência de determinação do CNJ para a retirada dos fóruns das armas de fogo apreendidas. As Serventias eram igualmente visitadas e os oficiais instruídos. Foi durante este biênio que fraudes foram detectadas e vários cartórios foram interditados, merecendo ainda mais atenção, contando com a ajuda da Polícia Federal solicitada pelo Corregedor.

A segurança se tornou meta. Quando da visita à comarca de Bequimão, o prédio havia sido invadido dois dias antes de nossa chegada. Tivemos tempo de constatarmos as grades serradas e a toga do magistrado queimada. Em Carutapera, notícias de que a Juíza, gestante, escondeu-se debaixo de um armário para não ser levada por assaltantes. Ali, tive grande emoção. Uma servidora com quase trinta anos de carreira se levantou com os olhos lacrimejados e pediu para dar um abraço no Corregedor. Dizia ela que nunca um Desembargador havia pisado naquela longínqua cidade. Lindo e triste!

Nossa rotina muitas vezes se ateve a estradas esburacadas, chuvas fortes, poeira, calor extremo, manadas gigantes que nos fazia parar, literalmente, por mais de meia hora, como a que encontramos na famosa Estrada do Ouro, sem pavimento; dias sem almoço, hotéis mofados, e poucas horas de sono. Inédito em minha vida, trabalhei em domingos. Por conta da rota e da necessidade de se adequar as visitas ao tempo, houve lugares em que juízes, com boa-vontade inestimável, prepararam todo o seu pessoal para nos receber.

Diante dessa pequena mostra das dificuldades, me pergunto onde estava eu quando proferi aquelas palavras extras em Pinheiro. Seria eu um ilusionista, pensando em ‘garrar o céu com a mão’, como diz o caboclo do sertão? Poderia ter dito o ‘muito obrigado’, resoluto, e aquela noite na estrada isolada entre Alto Parnaíba e Tasso Fragoso com o carro quebrado à 1h00 da manhã talvez jamais estivesse em minha história. Por outro lado, eu me perguntaria: qual o sentido da minha vida profissional? Onde estaria a paixão que eu tenho pelo Direito?

Nesta reta final do mandato do Desembargador Guerreiro Júnior à frente da Corregedoria, sinto-me realizado, ainda que minhas vértebras tenham pulsado em mais de 50 mil quilômetros de estrada. Quem quer que tenha falado por mim naquele dia em Pinheiro, valendo-me do meu teimoso sincretismo, o fez para nos tornarmos, mais que experimentados profissionais, humanos, solidários com o que prega os reais princípios da Ciência Jurídica a atravessar cotidianamente águas revoltas, como aquelas que enfrentei mais de uma vez na baía de São Marcos. 

Prazerosamente, depois da invernada do Maranhão, o mar se torna mais azul e calmo. E se já era tempo de colheita, agora a safra será histórica

                                                                                     Flávio Gomes Assub
                                                                        Analista Judiciário do TJ-MA
                            Assessor-Chefe da Assessoria Especial da
 Corregedoria Geral da Justiça

*Esse artigo foi publicado na coluna Opinião do Jornal
O Estado do Maranhão, domingo, dia 23 de outubro de 2011.
P.S. Nesse post, fotos do próprio autor do texto clicadas durante 
as viagens de inspeçãoe  publicadas no Instagram.